sábado, 23 de fevereiro de 2013

Volta pra cá, Zé

Zé não era um sujeito amargo como os adultos que eu conhecia. Dono de livraria, gostava de recitar Vinicíus, Neruda e Fernando Pessoa pra esposa que não entendia nada e não gostava de ouvir. Cantarolava João Gilberto e Chico quase sempre, às vezes Nara Leão e Cartola. Passava a maior parte do tempo em sua loja, contando causos e histórias de ninar para as crianças que viviam lá. Tinha um filho, mas ele não se interessava pelas linhas de capa grossa. Preferia a tevê e o videogame que não dividia com ninguém.
Homem feito, se alimentava de esperança em dias seguintes. Acreditava não ser o único a tentar mudar visões distorcidas pela sociedade. Guiava a vida com crenças num mundo melhor.
Ele ia a praia construir castelos de areia pro mar destruir. Ria sozinho e conversava com as ondas. Adorava chuva pois logo depois o arco-íris pintava a paisagem. Agradecia a Deus por não tê-lo feito de barro. Tinha alma e coração, e não se esquecia disso.
Caminhava pelo centro da cidade e se sentia infeliz por ver tantos prédios no alto do céu. Mais infeliz ainda, pelos amigos que não conhecia presos nos escritórios atrás das janelas. Preferiu não aprender a dirigir, pedalava pelas ruas pra sentir o vento secar o suor da camisa e as lágrimas do rosto.
Lembro bem do dia em que Seu Zé não apareceu na livraria. Lembro da semana inteira sem ouvir sua voz carinhosa. Lembro de minha mãe dizendo que ele havia ido pro céu conversar com os anjos. Lembro de pensar que Deus era muito egoísta por tirar de mim meu melhor amigo.
Quando vi Seu Zé todo pálido e de terno preto, não acreditei que era ele. Sorri e comecei a pensar "Eles estão me enganando, deve ser outra brincadeira do Zé". Minha mãe disse que era desrespeitoso sorrir em enterros, e que eu devia me despedir do dono da livraria. Quando olhei pra ele logo vi seu sorriso dócil e pensei: Deus, teus dias agora serão maravilhosos. Só não se esqueça de mim, Zé.

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