quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Almoço em família

Dona da melancolia, a menina de vinte cigarros por dia se convenceu de que estava em depressão. Ninguém a questionou. Começaram a encontrar motivos para o alento afrouxar. As cicatrizes se foram quando ela aprendeu a tragar. Era suicida, mas covarde demais pra tirar a própria vida. Preferiu a morte em parcelas.
Amordaçaram-na para que seus problemas não escapassem da cabeça. Imagina o alvoroço que causariam? Bastavam as contas no fim do mês, mais um tormento sua mãe não iria aguentar. Taparam também seus olhos para que a tristeza não afetasse o bem-estar da casa. "Onde já se viu atrapalhar felicidade alheia? Que sofra em silêncio, egoísta."
Viveu por dois meses e três semanas com a compainha das paredes mal pintadas de seu quarto. Completamente nua e de sapatos azuis. Ninguém notou quando seu corpo saiu pra passear. Trancafiou sua alma e coração num pote que deixou na esquina. Precisava de um pouco de paz.

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Meu sonho de pequena quebrado em mãos miúdas



- Que tanto vens à minha casa, menina?
Minhas palavras foram tomadas pelo susto. Era suave e sereno o som da voz da mulher do dono da livraria. Disse-lhe então, após um breve suspiro, o que sua filha havia me prometido. A menina não aparentava medo. Na verdade, seus lábios carregavam um sorriso de canto, maldoso como seu próprio ser.
- Por que não compras o livro? Disse a mulher que não me olhava nos olhos. Parecia distante e triste.
- Minha sede de leitura não é proporcional ao que tenho no bolso. Por favor, dê-me apenas um dia com o livro. Termino ele todo, lhe juro.
- Não posso lhe dar o que não é meu. Contente-se com o jornal diário, as placas de trânsito e os livros escolares.
Comecei a choramingar feito recém-nascido. Tentei falar mas minha boca não obedecia. Nem ela acreditava em tamanha crueldade.
- Vá para tua casa, menina.
Ela disse e bateu a porta de seu casarão.
Naquela manhã de dias seguintes, não consegui pular amarelinha nem meio-fio. Voltei pra casa e me hospedei na rede, lá na varanda mesmo. Deitei pra contar as estrelas do céu. Contei pra elas meu desespero e adormeci ouvindo seus conselhos.

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Volta pra cá, Zé

Zé não era um sujeito amargo como os adultos que eu conhecia. Dono de livraria, gostava de recitar Vinicíus, Neruda e Fernando Pessoa pra esposa que não entendia nada e não gostava de ouvir. Cantarolava João Gilberto e Chico quase sempre, às vezes Nara Leão e Cartola. Passava a maior parte do tempo em sua loja, contando causos e histórias de ninar para as crianças que viviam lá. Tinha um filho, mas ele não se interessava pelas linhas de capa grossa. Preferia a tevê e o videogame que não dividia com ninguém.
Homem feito, se alimentava de esperança em dias seguintes. Acreditava não ser o único a tentar mudar visões distorcidas pela sociedade. Guiava a vida com crenças num mundo melhor.
Ele ia a praia construir castelos de areia pro mar destruir. Ria sozinho e conversava com as ondas. Adorava chuva pois logo depois o arco-íris pintava a paisagem. Agradecia a Deus por não tê-lo feito de barro. Tinha alma e coração, e não se esquecia disso.
Caminhava pelo centro da cidade e se sentia infeliz por ver tantos prédios no alto do céu. Mais infeliz ainda, pelos amigos que não conhecia presos nos escritórios atrás das janelas. Preferiu não aprender a dirigir, pedalava pelas ruas pra sentir o vento secar o suor da camisa e as lágrimas do rosto.
Lembro bem do dia em que Seu Zé não apareceu na livraria. Lembro da semana inteira sem ouvir sua voz carinhosa. Lembro de minha mãe dizendo que ele havia ido pro céu conversar com os anjos. Lembro de pensar que Deus era muito egoísta por tirar de mim meu melhor amigo.
Quando vi Seu Zé todo pálido e de terno preto, não acreditei que era ele. Sorri e comecei a pensar "Eles estão me enganando, deve ser outra brincadeira do Zé". Minha mãe disse que era desrespeitoso sorrir em enterros, e que eu devia me despedir do dono da livraria. Quando olhei pra ele logo vi seu sorriso dócil e pensei: Deus, teus dias agora serão maravilhosos. Só não se esqueça de mim, Zé.

E se a vida só me der um olho roxo?

Eu sou uma bomba relógio com o cronômetro perto do fim. Sou uma bomba relógio que começa no dez e cai rápido demais. Deve haver algum fio solto.
Sou um caderno despejando confusão deitado no divã de um psicólogo qualquer. Vez ou outra tropeço em sentimento novo.
Minha dança suicida se tornou flerte prejudicial. Como sair desse tango quando me parece ser o mais conveniente? É um compasso muito fácil de aprender, basta seguir o que a lâmina propor.
Sem alarde, sem desespero. Sangue vermelho quente é o que mais gosto de usar. Pingando pelos cômodos da casa, direi adeus quando o último acorde tocar.

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Esqueça de lembrar

Sinto a angústia permear minhas veias que saltam na pele tentando escapar. Urram de agonia buscando um meio pro fim.
Sei da discordância de teus olhos claros borrados. Uma aquarela de duas cores: verde e preto. De que adianta remoer um fardo tão grande? Deixa pra lá que o vento varre pra debaixo do tapete.
Em pequenas linhas escrevo a mais extensa nota de rodapé: ela não vai voltar. Repouse a desordem de teu peito, lave o rosto e enxugue o coração. Você merece mais que promessas.

sábado, 9 de fevereiro de 2013

Depois do vasto campo de girassóis

Primeiro veio a luz, e um monte de lamparinas acesas. Podia ser um daqueles bang-bang de faroeste, mas na vila nem havia xerife. Sentado à beira da estrada, vi um velho maltrapilho com chapéu de palha, mascando fumo e rindo pra senhora na cadeira de balanço. Eles observavam vidas. Era uma dessas cidades pequenas em que todos se conheciam, do íntimo ao fútil, ninguém escapava. 
Não tinha eletrecidade nem contato com a civilização. Quando a noite chegava dava pra sentir a cera da vela queimar. Famílias se reuniam pro jantar e de sobremesa ouviam histórias de seus avôs e avós. Histórias que serão contadas pelos filhos deles, e pelos filhos dos filhos, até o último respiro de gerações. Nosso legado é o que a gente conta.
Dava pra ouvir o piar dos pássaros sem interferência de maquinarias e motores automobilísticos. Um verdadeiro sopro de sossêgo. As estrelas cobriam o céu inteiro, o ar era limpo e cheirava campo. A única fumaça do lugar brotava das fogueiras.
Não vou contar onde fica a cidadezinha do leste por medo que talvez você conte a outro alguém. Seria uma pena ver tal calmaria ser tomada pela ganância do homem branco moderno. Você só precisa saber que eu estive lá, em meu mais lúcido sonho de minhas quase duas décadas.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

João ninguém

Vivo no inferno e a temporada é de chuva, parece até piada do tempo. O dia amanhece escuro e traz neblina pros pulmões. Não faz brilhar o sol, as nuvens se tornaram a atração principal do céu.
Sinto saudade do circo, fazer parte do espetáculo. Mesmo sendo palhaço triste, do alto do trampolim observava a multidão numerada com o riso pronto pra escapar. De maquiagem borrada eu fazia graça e deixava o desespero berrar, rasgando os ouvidos de quem fosse capaz de entender. Assim fui minando cicatrizes literais de um corpo que não me pertencia. Ainda não sei o que fazer com as mãos, acho que nasci do avesso.
Vou me jogar na arena, sobreviver ao picadeiro. Quero ser necessário e fingir voar do precipício. Assim, alado, sem coordenar o vento. 
Ou me afunda de vez ou me joga na cama elástica, meu bem.